As Rochas - Capítulo III

Arnaldo Rubi suspirou ao entrar em casa. Após um longo dia entediante a fotografar modelos nuas, podia finalmente relaxar perante uma bebida e assistir ao seu programa favorito. "As Árvores" era uma série televisiva muito curiosa, em que todos os personagens tinham nomes relacionados com o mundo vegetal. A heroína chamava-se Ludomila Clorofila e estava apaixonada pelo filho de um magnata da família dos Carvões. Bastas vezes se tinha Arnaldo interrogado onde iriam eles desencantar estas ideias geniais. Os autores deviam ser com toda a certeza pessoas sobredotadas.


No episódio daquela noite, Ludomila iria descobrir que estava doente com uma infecção ao nível das mitocôndrias.

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João Lama Barros era um homem de poucas falas. Só tinha três. A fala normal, que toda a gente tem, a fala esganiçada, que empregava quando sentia irritação, ansiedade ou cócegas e a fala grave, cava, que utilizava nas relações com os seus subordinados. Agora estava a usar uma fala sinusoidal, alternando tons baixos com tons altos, quase esganiçando a voz no final das frases. Isto era novidade para Feldspato Abstracto, o que o deixou surpreendido.
- Que vens fazer aqui? - inquiriu o omnipresente senhor da noite.
- Porquê? Não posso vir beber um copo? - retorquiu Abstracto. Sentia-se um pouco intimidado pelo facto de ter sido agarrado pelos capangas de João e atirado para a cadeira onde se sentava agora. - Estamos num país livre! Se não me queres aqui, não me deixes entrar. Mas não uses as tuas tácticas de intimidação comigo. Já não trabalho para ti!
- Isso é o que veremos. Tenho uma proposta a fazer-te que te dará muito dinheiro a ganhar.
- Não farei o teu trabalho sujo!
- Então, então... Eu sou um respeitável empresário. Nada do que faço é ilegal, como bem sabes.
- Ah... - fez notar inteligentemente Feldspato.
- Estou preparado para te pagar a quantia de x se me fizeres um trabalhito.
- Que espécie de trabalho? - A soma de x fez baixar as defesas de Abstracto. Sabia que Lama Barros era um pouco sovina e que nunca pagava mais do que y quando precisava de algum favor.
- Necessito de um homem infiltrado no Vulcão. Ando há anos atrás da compra dessa casa. Já tentei várias estratégias mas parece que o dono antecipa sempre os meus movimentos. Tenho que saber se tenho um espião no meu staff ou se o gajo é mesmo adivinho.
- É só isso? Não vou ter que roubar nem matar?
- Ofendes-me com essas insinuações.
- E porque me estás a contratar? Por ventura não podes arranjar quem quiseres?
- Sabes, Patinho, eu sempre gostei de ti. Já o inverso não é verdade, eu sei.
- O meu nome é Feldspato! - Lama Barros era conhecido por alcunhar todos aqueles que trabalhavam para si, sempre com nomes um pouco diminuitivos. Era uma forma de se superiorizar perante os outros. - Não me voltes a chamar Patinho! E se queres os meus serviços tens que reunir as seguintes condições: dizes-me a verdade sobre o porquê de ser eu o escolhido e dás-me x+y pelo trabalho.
- Ôpa! Saidinho da casca, hein? - João fez uma pausa e prosseguiu. - Muito bem. Dou-te x agora e y assim que me trouxeres dados significativos. O porquê de seres tu é fácil de responder. Já trabalhaste comigo e durante esse tempo foste leal. Quando a tua consciência não aguentou mais, em vez de me traíres, como tantos outros tentaram fazer, simplesmente foste-te embora. Admiro a tua coerência e sei que posso confiar em ti. Além disso conheces a noite, mas o dono do Vulcão não sabe quem tu és. - Feldspato Abstracto olhou João Lama Barros um pouco incrédulo. Um elogio vindo dele... Seria uma boa coisa? X+y era muito dinheiro. Decidiu aceitar.

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A visão fazia-lhe lembrar um filme de Pasolini. A Madre Pérola deitada de costas; o hábito arregaçado até às ancas; pernas flectidas e entreabertas e a gritar-lhe: "Vá! Fornica-me! Fornica-me! Força aí!". O Padre Basalto cerrou os olhos e abanou a cachimónia até obliterar tais imagens. Nesse momento, a porta do gabinete abriu-se e a madre superiora entrou com uma freira jovem e esbelta. Era a grávida Irmã Sílica de Jesus.
- Vá, Irmã! Conte os seus pecados! - disse rispidamente a velha madre.
- Então, Madre Pérola! - interveio o Padre. - Eu é que sou o pecador. Eu é que a seduzi, num momento de franqueza. Ela bem disse "não!,não!", mas eu tinha lido algures que quando uma mulher diz não quer dizer na verdade sim. Eu só peço a Deus que me perdoe...
- Isso é tudo muito nobre, Padre Basalto. Mas o que vamos fazer?
- E se a levássemos à Clínica dos Arcos?
- Credo! - exclamou Madre Pérola, benzendo-se compulsivamente. - Mas que grande pecador me saiu o senhor, Padre! - E tu o que dizes, pequena?
Nesta altura, a bela Sílica de Jesus desfez-se num pranto de bradar aos céus.
- Eu... eu... - começou por dizer - eu quero ter esta criança. Eu sei que Deus já me perdoou. Além do mais, foi concebida em cima do altar da igreja. - A velha madre benzeu-se obsessivamente. - Ali estava eu, deitada no altar, a olhar Cristo na cruz, enquanto o Padre Basalto me penetrava ferverosamente. - A Madre Pérola benzeu-se exclusivamente. - E no momento em que lançou a sua semente em meu ventre, olhei Jesus nos olhos e ele me abençoou, pelo que sinto que também abençoará a criatura que está para vir. - A velha madre benzeu-se fisiologicamente. - Será uma criança concebida debaixo do olhar do Senhor- acrescentou Sílica que neste momento teve um vipe e desmaiou.
- Lindo serviço, sim senhor - censurou Madre Pérola, enquanto se benzia aprazmente. - E agora?
- Mais alguém sabe desta situação, Madre?
- Só nós três e a porteira aqui do 27, pelo que podemos estar descansados quando ao segredo da situação.
O Padre Basalto começou a tamborilar com os dedos na secretária de madeira de carvalho. Era uma peça de rara beleza. Datava talvez do século XVII ou talvez fosse do IKEA. O velho sacerdote nada percebia de móveis de estilo, pelo que prosseguiu com o tamborilanço. Aquilo ajudava à concentração. Costumava interpretar peças clássicas. Era um belo espectáculo para quem o visse a tamborilar com as suas mãos secas, os dedos esguios, cada um a tentar apanhar a atmosfera que havia presidido à composição das variadas peças. Neste momento interpretava uma selecção de obras escolhidas de Bach. Achava este compositor particularmente relaxante, quando tinha que elaborar pensamentos sobre as raparigas que engravidava.
- Já sei! - exclamou por fim. - Amanhã, no fim da missa, dirijo-me ao rebanho e digo que o meu amigo Padre Topázio vai organizar uns Jogos Sem Fronteiras espirituais e convidou uma Irmã do Convento de Nossa Senhora da Rocha para participar. E aí, a Madre Pérola designa a Irmã Sílica como representante do convento. Enfiamos a moçoila num sítio qualquer até parir, e depois logo se vê.
- Aleluia, Padre! Mas que bela ideia!
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Penedo sabia no seu íntimo que nada seria como dantes. O que agora sentia por Lava Xisto era uma coisa tão forte como um tornado branco. O velho serviçal, talvez devido à sua educação, ou talvez devido à sua idade, ou talvez devido a ser velho, ou simplesmente porque era racista, não gostava de pretos. Por isso, sempre que se lhe deparava uma dualidade, escolhi branco. Ele notava que com o passar do tempo, as dualidades eram cada vez mais frequentes. Seria a sociedade que assim o impunha? Seria a morte iminente de Fidel Castro? Seria do aquecimento global? Seria do apito dourado? Apito dourado? Mas que pensamento tão estranho... O que seria apito dourado? Dourado ou doirado? Parecia-lhe, na ingenuidade própria dos seus 134 anos, nome de casa de alterne. Não que ele fizesse a mais estúpida ideia do que era uma casa de alterne, mas mesmo assim era isso que lhe parecia. Touros ou toiros? Louça ou loiça? Touca ou toica? Ou ou oi? Quanto mais se embrenhava nestes pensamentos, mais se esquecia do início do capítulo e do que estávamos a falar e mais se sentia distanciado de tudo aquilo, do que quer que aquilo fosse.
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Brita Cascalho rejubilou de alegria quando viu o anúncio no jornal a pedir um criado para a mansão dos Logo e Xisto.
- Cá está aquilo de que estava espêrando. - Tinha vivido 6 dias no Brasil e inevitavelmente havia adqurido um pouco se sotaque. - Tenho que avisar o Arnaldo. Pegou no telefone e discou o número do fotógrafo.
- Estou? - disse do outro lado uma voz chorosa.
- Arnaldo? Estás a chorar, filho?
- É a Ludomila! Está doente!
- Arranjaste uma cadela?
- É a da novela "As Árvores".
Brita ficou confusa por uns momentos até compreender do que se tratava.
- E estás a chorar por causa disso, homem? Ó valha-me Deus! - Como Deus não interveio, ela prosseguiu. - Quero-te aqui amanhã bem cedo. Vais servir para a mansão dos Logo e Xisto!
- Vou ser criado?! Iupiii! - Arnaldo esqueceu imediatamente Ludomila e seus olhos brilharam com há muito o não faziam. - Obrigado, Brita!

A bisbilhoteira profissional sabia bem que poderiam estar perante um buraco no enredo. Senão, vejamos: Arnaldo Rubi assistia à novela após um dia de trabalho entediante a fotografar modelos nuas. Podemos pois supor que era de noite. E só agora ela via o anúncio no jornal? Não tinha perscrutado os jornais pela manhã, como boa profissional que se orgulhava de ser? Pensou mais um pouco no assunto e as suas ondas mentais começaram a interferir na ligação telefónica, pelo que deu uma desculpa esfarrapada a Arnaldo e desligou. Se havia buracos no enredo, talvez ela pudesse aproveitar-se disso. Talvez fosse como diziam. Os buracos podiam estar ligados uns aos outros e ela podia saltar para vários sítio do enredo quase instantaneamente. Podia saltar até ao fim, ver como acabava e voltar atrás para alterar o que não fosse do seu agrado! Este fascinante pensamento, fez com que fizesse xixi nas cuecas, o que a deixou embaraçada perante ela própria.

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