As Rochas – Capítulo IV

O Dr. Pedro Tumular estava radiante quando discou o número do Penso. “Ora aqui está uma frase que não se pode pronunciar hoje em dia!” – pensou com os seus botões. “Os telefones já não são de disco. Basta aceder à lista telefónica e escolher o destinatário a contactar. Então será: quando teclou o número. E já agora, «pensar com os seus botões»? Pensa-se é com o cérebro.
- Estou, Penso? – começou por dizer assim que a ligação foi estabelecida. – Olha, arranjei-te uma consulta com um especialista em deriva dos continentes. É o Dr. Geólogo das Fontes. Ele tem um novo tratamento que te quer propor.
- E isso não será arriscado? – avançou o outro.
- Acho que não tens nada a perder, amigo.
- Tens razão! Vou comparecer.

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Quartzo Minguante enviou um sms a Lava que rezava assim:

Pai N/ k estais no ceu,
santificado seja o v/ nome,
venha a nos o v/ reino,
seja feita a v/ vontade
axim na terra como no ceu.

O pao n/ de cada dia nos dai hoje,
perdoai-nos as n/ ofensas,
axim como nos perdoamos
a kem nos tem ofendido,
não nos deixei cair em tentaçao
mas livrai-nos do mal.

Amen.

Era um código secreto a pedir que se encontrasse com ele atrás da igreja. Era inteligente, curto, conciso e abençoado. A rapariga, que depois da cena com Adrianna estava incandescente por falar com ele, voou ao seu encontro.
- Mor, - principiou ele – tenho estado a pensar e necessitamos de desenvolver as nossas personagens. Eu, por exemplo, apareci no primeiro capítulo, dando o mote para uma das tramas fundamentais desta novela e foi preciso enviar-te um sms para aparecer de novo. E já sabes o que dizem: quem não aparece, não existe. E tu também não estás bem desenvolvida.
- Olhamêste! – disparou ela. – Não estou bem desenvolvida? – Virou-se para admirar o seu reflexo nos vitrais da igreja e estremeceu. Tinha-se tornado num homem feio, barbudo, esquelético e pregado numa cruz. Depois percebeu. Devia ser aquela saia que não lhe caía bem. Mas ela lembrava-se da imagem que vira ao espelho antes de sair de casa. Um belo par de mamas. Um cu de fazer parar o trânsito. Quando um homem se cruzava com ela, invariavelmente voltava a cabeça para lhe apreciar a bunda. – E algumas mulheres também!! – A ideia surgiu-lhe como um flash de LSD. Não que ela alguma vez tivesse metido ácido, mas ouvira falar… A experiência com Adrianna estava a abrir-lhe novos horizontes.
- K keres dizer kom isso? – inquiriu Quartzo, falando à sms. Só então ela reparou que tinha pensado em voz alta.
-Ó querido, desculpa! Tenho uma coisa para te contar, mas temo…
- Não temas.
- Temo. Receio bem que tema. E que tema…
- Desembucha, pá! Era disto que eu falava! Esta é uma excelente oportunidade para desenvolvermos nossas personagens!
- Então, aqui vai: uma amiga minha, que já não via há séculos, apareceu-me hoje em casa e…
- Siiimm?
- E… fizemos amor!
Nesse instante, Quartzo ficou completamente baço. Deu-lhe uma tontura, um nó na garganta, daqueles de marinheiro, e não conseguiu reprimir um vómito. Ela prosseguiu.
- A Adrianna apanhou-me de surpresa. Quero que saibas que isto nada altera o que sinto por ti. Aliás, gostava muito que fossemos os três p’rá cama.
Os vómitos saíam agora em golfadas. Teve que se ajoelhar, pois as pernas fraquejaram-lhe.
- Que nojo! Duas mulheres a ter sexo! E queres meter-me no meio das duas? – a ideia era tão repugnante como matar focas à paulada. Se bem que no caso das focas ainda se aproveitava a pele. Ele olhou em redor para se certificar que a Fátima Lopes (a estilista, pois claro, não a outra pindérica) não estava por perto, não fosse o seu pensamento ser audível.
Lava acariciou-lhe a cabeça e para lhe provar o seu amor lambeu os restos do vomitado que pendiam de seus lábios. Aquele doce gesto reconfortou-o. Aos poucos, as cores voltaram-lhe. A princípio ténues, mas a cada segundo mais vivas. Ora era um laranja pantone 21, ora um vermelho que nem o rgb ele sabia. Inspirou fundo e beijou-a longamente. Mais do que 37 metros seguramente.
- Obrigado, Lava. Deste um forte contributo para o desenvolvimento de nossas personagens. Parabéns. E eu aceito. Vou pr’á cama convosco.

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Depois do encontro com Lava, Adrianna estava nas núvens. Não tinha falado muito sobre o que tinha acontecido entre ambas, por isso não sabia o que se iria passar a seguir. A amiga tinha-lhe contado sobre Quartzo Minguante (seria índio?) e esta era uma peça que não se encaixava em seus planos. Pretendia a Lava só para si. Resolveu investigar quem era este rapaz.
Lembrava-se que quando mais nova, existia naquela cidade uma pessoa que tudo via e tudo sabia. Uma coscuvilheira-mor, por assim dizer. Meteu-se ao caminho e foi visitar a porteira do 27.

Antónia Tectónia era porteira de profissão e coscuvilheira por arte. Arte essa que tinha aprendido ainda menina com sua mãe. Muita gente pensa que ser cusca é fácil. Basta saber e contar. Nada de mais errado. Há que saber ouvir, ver cheirar, sentir, guardar. E, num timing perfeito, entregar a informação de forma subtil à pessoa certa. O termo técnico correcto para isto é deliver [di-liv-er], do inglês.

Quando tocaram à porta, Antónia foi abrir. Apareceu-lhe uma moça que ela não sabia dizer quem era. Isso perturbou-a, deixando-a paradoxalmente curiosa. A velha veia cusca a funcionar.
- Olá, D. Antónia. Lembra-se de mim? Sou a Adrianna.
”Ah, então esta é que é a fufa!”, pensou a porteira, toda radiante pelo que lhe acabara de cair no colo. É que na manhã desse mesmo dia tinha tido outra visita insuspeita. O velho mordomo dos Xistos tinha ido aconselhar-se com ela. Coitado. Simpatizava deveras com ele. Isso porque quando sua mãe era gaiata, a sua família era extremamente pobre e o senhor Penedo tinha-os ajudado bastante, entregando-lhes coisas que sobravam do dia-a-dia dos Xistos. Sua mãe contara-lhe várias vezes quão bom tinha sido o agora idoso mordomo. Este continuou a ser visita de sua casa, mesmo depois da família ter saído do limiar da pobreza. Antónia tratava-o carinhosamente por Ti Penedo. E foi com as mãos a tremer que Ti Penedo lhe tinha entrado pela casa adentro, narrando-lhe a coisa mais improvável que ela esperaria ouvir nesta fase da sua vida. Compreendam. A Coscuvilhice teve o seu tempo áureo nos anos 50-60, antes da civilização ocidental ter perdido a ingenuidade. Depois vieram as drogas, o rock, o vietnã, o 25 dabril, e o mundo não foi mais o mesmo. Mais tarde, a televisão e a Queda do Muro de Berlim deram a machadada final. Felizmente, pensou Tectónia, neste novo século estava-se a assistir ao Ressurgimento. O Ressurgimento é, como todos sabem, um movimento cultural parecido com o Renascimento. São movimentos que nascem na decadência das civilizações e que dão um novo impulso às sociedades. E são transversais a elas. Está a acontecer, as we speak, não só na coscuvilhice mas também na música, no cinema, no Benfica, etc.. Caracteriza-se por uma nostalgia das coisas boas do passado, mas impregnada de essências do futuro. Antónia sentia orgulho por fazer parte desta nova revolução cultural. Sonhava mesmo com o Nobel da Coscuvilhice. Era uma mulher ambiciosa.
Penedo confidenciara-lhe que estava em terrenos desconhecidos. Tinha-se apaixonado pela menina Lava. Ela estranhou. Um homem a caminho dos 140, que convive na mesma casa com a miúda há mais de vinte? Porquê agora? Ele contou-lhe o episódio a que tinha assistido e assegurou-lhe que, embora não tivesse percebido o que vira, a paixão tinha-lhe subido à cabeça. “Às duas?”, pensou mentalmente a porteira.

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